Fragmento
de texto do século II fala em "mulher de Jesus"
Um papiro é a primeira evidência de que os cristãos já
acreditaram que Jesus foi casado, segundo um estudo da Harvard Divinity School.
A descoberta foi anunciada em um congresso no Institutum Patristicum
Augustinianum (do Vaticano) em Roma.
"A tradição cristã afirma que Jesus não foi casado,
apesar de não haver nenhuma evidência histórica confiável para suportar essa
afirmação", diz Karen King, de Harvard. "Este novo texto não prova
que Jesus foi casado, mas nos conta que a questão como um todo apenas veio de
um vociferador debate sobre sexualidade e casamento. Os cristãos discordavam
sobre se era melhor ou não casar, mas isso foi um século depois da morte de
Jesus, depois eles apelaram para o estado conjugal de Jesus para suportar suas
posições."
Roger Bagnall, diretor do Instituto de Estudo do Mundo
Antigo, em Nova York, acredita que o fragmento seja autêntico, baseado em
exames do papiro e da caligrafia. Outros especialistas também acreditam na autenticidade
baseados em outros dados, como linguagem e gramática, segundo nota de Harvard
desta terça-feira. O objeto ainda vai passar por mais testes, especialmente da
composição química da tinta.
Um dos lados do fragmento tem oito linhas incompletas de texto,
enquanto o outro está muito danificado e apenas três palavras e algumas letras
podem ser vistas - inclusive com infravermelho e processamento da imagem em
computador. Karen afirma que o pequeno texto fala sobre assuntos como família,
disciplina e casamento dos antigos cristãos.
A pesquisadora e a colega AnneMarie Luijendijk, professora
de religião em Princeton, acreditam que o fragmento faça parte de um evangelho
desconhecido. Um artigo com resultados do estudo do objeto será publicado em
janeiro de 2013 no jornal Harvard Theological Review.
O fragmento faz parte de uma coleção particular cujo dono
procurou a pesquisadora para que ela traduzisse o texto. Ele deu a Karen uma
carta dos anos 80 do professor Gerhard Fecht, da Universidade Livre de Berlim,
na qual ele afirmava acreditar que era uma evidência de um possível casamento
de Jesus.
A professora de Harvard disse não acreditar em um primeiro
momento (em 2010) que fosse autêntico e disse ao dono que não tinha interesse
na análise. Contudo, ele persistiu no contato e, em dezembro de 2011, ela o
convidou a levar o objeto a Harvard. Em 2012, ela e Luijendijk levaram o papiro
a Bagnall que analisou e disse ser possivelmente autêntico.
Pouco se sabe de sua origem, mas acredita-se ser do Egito,
já que está escrito em cóptico - usado pelos cristãos egípcios durante o
império romano. Como há texto dos dois lados, os pesquisadores acreditam que
faça parte de um livro, ou códex.
Para motivos de referência, o evangelho do qual supostamente
faria parte foi chamado de "Evangelho da Mulher de Jesus". A
pesquisadora acredita que ele seja da segunda metade do século II, já que
outros evangelhos descobertos recentemente são dessa época. A origem, como dos
outros, certamente está atribuída a alguém próximo a Jesus, mas o verdadeiro
autor deve ser desconhecido. Eles acreditam ainda que foi escrito originalmente
em grego e depois traduzido.
No texto, os cristãos falam de si como uma família, com Deus
como pai, seu filho Jesus e membros como irmãos e irmãs. Duas vezes no fragmento,
Jesus fala de sua mãe e de sua mulher - sendo que uma das duas ele chama de
Maria. Os discípulos discutem se Maria é digna, e Jesus diz que "ela pode
ser minha discípula".
Segundo Karen, somente por volta do ano 200 é que foi
afirmado, em texto registrado por Clemente de Alexandria, que Jesus não se
casou. Na época havia uma discussão se os cristãos deveriam se casar ou viver
no celibato. Segundo Clemente, cristãos da época afirmavam que o casamento fora
instituído pelo demônio. A pesquisadora afirma que Tertuliano de Cartago, uma
ou duas décadas depois, foi quem declarou que Jesus não havia se casado. Ele,
contudo, não condenava o casamento - desde que ocorresse apenas uma vez, mesmo
em caso de morte de um dos cônjuges.
No final, afirma Karen, a visão dominadora foi a de que o
celibato é a mais alta forma de virtude sexual do cristianismo, enquanto
permite o casamento, mas apenas para a reprodução. "A descoberta desse
novo evangelho oferece uma ocasião para repensar o que achávamos saber ao questionar
qual foi o papel que o status conjugal de Jesus teve historicamente nas
controvérsias dos cristãos antigos sobre casamento, celibato e família. A
tradição preservou apenas aquelas vozes que clamavam que Jesus nunca se casou.
O 'Evangelho da Mulher de Jesus' agora mostra que alguns cristãos pensavam de
outra forma."